Faleceu na semana passada o produtor e goliardo António Carvalho, dos vinhos Casal Figueira da Região de Lisboa, de morte súbita enquanto pisava uvas no seu lagar.
Bastantes de vós tiveram a ocasião de o conhecer em provas nos Goliardos, ou então de provar os seus vinhos. Quem o conheceu de mais perto, pode sem dúvida constatar que o António era uma pessoa que marcava pela diferença, pela ousadia, pela alegria e pela extrema sensibilidade.
Estudou Enologia em Montpellier, no Sul de França, onde plantou amizades e influências vinícolas. De regresso às origens, trouxe no bolso algumas castas de estimação que semeou mais tarde quando comprou o Casal Figueira, na Estremadura, em A-dos-Cunhados. Roussanne, Marsanne, Petit Manseng fizeram parte dos vários vinhos a que António deu vida, algo certamente fora do comum. António contava que as tarefas agrícolas eram consideradas pouco nobres e que a sua mãe chorou quando pela primeira vez viu o seu filho enólogo formado em França subir para cima de uma tractor. António era um homem da terra, com fibra de vigneron.
O seu primeiro Casal Figueira saiu em 1995, mas demorou muito tempo a ter o devido reconhecimento. Verdade seja dita, o António e os seus vinhos passaram muitas vezes por incompreendidos, e talvez o justo reconhecimento nunca lhe tenha sido feito. Vinhos contra-corrente, numa região fora de moda, com um estilo próprio, numa linha natural e artesanal, em que a autenticidade e o respeito pelo terroir eram prioridades acima de vender com facilidade.
No último ano tínhamos criado um grupo de debate ligado ao vinho com vários produtores e outros profissionais denominado Amálgama e do qual o António fazia parte (bem como o José Mendonça que igualmente nos deixou este ano). Podemos desenvolver uma relação próxima com o António, que chocalhava o grupo e nos fazia sonhar em conjunto. Um dia, num dos vários encontros do Amálgama, perguntámos o que era afinal terroir, essa noção muitas vezes reduzida a micro-clima. O António respondeu que terroir é quando “Sentes que o vinho perfeito está lá, tu só não o podes estragar!”. Estragar implica maquilhar, deturpar, corrigir, enquanto que António procurava simplesmente revelar, salientar o melhor daquilo que cada ano a terra dá. Quando numa viagem avistava ao longe uma paisagem que sentia “ter terroir”, mandava parar os cavalos para admirar a terra, deixando perplexos os restantes com as exclamações entusiastas de quem vibra com o que vê e sente apaixonadamente. Sim, sem dúvida que o António vivia apaixonadamente o vinho e a vida.
Apesar da sua formação científica, fazia o vinho antes de tudo mais de uma forma intuitiva, através dos sentidos. Sentia a terra, envolvia o corpo e a sua energia na mais simples poda. Utilizava práticas bio-dinâmicas, que defendia de uma forma convicta e convincente, ao ponto de num dos encontros, o produtor Álvaro Castro lhe ter dito “é a primeira vez que oiço um bio-dinâmico que não é aldrabão” e de ter aceite o desafio do António de fazer uma experiência bio-dinâmica na sua famosa Quinta da Pellada. Não se chegou a realizar com o António, mas teremos que garantir que a Pellada será um dia dinamizada com o famoso preparado 501.
Das muitas experiências que o António realizou, houve também as que não correram bem. Tendo em conta as tantas que bebemos maravilhados, comprovam que a ousadia e a capacidade de errar são essenciais para evoluir, aprender e contribuir para um conhecimento colectivo, viver de uma forma estimulante, sonhadora e apaixonada. A coragem do António, misturada com rasgos de loucura imprescindíveis, faz dele uma personagem dentro do mundo do vinho única e vital. Os seus vinhos, tal como ele, não são (felizmente) consensuais, mas são incontestavelmente genuínos, puros, honestos, espontâneos com um carácter próprio.
2007 foi a última colheita do Casal Figueira, já que a propriedade terá sido vendida, e em 2008 novos voos começam para o António, com o vinho Vital Vinhas Velhas, feito a partir de parcelas alugadas com a casta Vital com vinhas de idades respeitáveis na Serra de Montejunto.
Nos últimos meses, tínhamos colocado o vinho do António nos pacotes da Academia. Mas o António entregou-nos as garrafas despidas, sem nenhum rótulo, algo que só ele. Tivemos telefonemas de pessoas a perguntar se não haveria um engano. E foi assim que o vinho do António passou a chamar-se nos Goliardos “O Clandestino”.
No meio dos debates acesos sobre a evolução do mundo do vinho, o António animava os encontros com gargalhadas vivas, mandava piadas, bebia vinho de uma forma festivamente contagiante.
Quando ele gostava dum vinho, fazia com a sua mão a trajectória de um avião a descolar, numa imagem aérea que resume bem a personagem. As suas últimas palavras que trocámos com ele sobre os vinhos que estava a vindimar em 2009 foram em francês “divin! ça sent la sierra”.
António, ficamos cheios de vontade de conhecer o resultado desta tua vindima, que beberemos goliardicamente à tua coragem em ser e fazer diferente. A tua vida inspira-nos.
Com uma eterna saudade das tuas gargalhadas VITAIS!
Beijinhos amigos,
Nadir e Sílvia, pelos Goliardos