A Via Natural da Cultura, por Nadir Bensmail

“Eu odeio vinho e produtores”, é uma paródia da frase paradoxal do antropólogo Claude Lévi-Strauss no início de Tristes trópicos: “Eu odeio viagens e exploradores”. Duvido que algum dia o pense, nem que seja só numa manhã de uma ressaca.

Por vezes, pensamos que a questão está resolvida. Mas às vezes basta descentralizar-se para ver as coisas que nos pareciam remendadas ou recozidas com um frescor recuperado e vislumbrar o caminho a cavar com a vontade dos recém-nascidos. A visão da espuma rugindo do oceano no inverno ou a escultura meticulosamente harmoniosa e perene de paredes de pedra que desafiam o tempo podem ser esses catalisadores e fontes vitais. Pasolini falava sobre “agarrar a beleza” onde ela surgiu.

O vinho é um mistério encantado, o mundo do vinho e da gastronomia pode ser chato ou prosaico, ou mesmo gregário e, portanto, planamente previsível. É como a música e o meio musical.

Nestes momentos, imagino uma degustação no meio de uma aldeia do Mali, numa atmosfera menos monolítica ocidental, com camisas coloridas e floridas, o som da Kora, uma temperatura asfixiante que faz quereres beber vinho como ir à mina. Os baobás estão no horizonte, o chão em terra batida lembra a essência do sangue da terra, a fronteira entre embriaguez e miragem dissolve-se, o álcool liberta anjos malignos ou virtuosos por cima das nossas mentes, e a imaginação vagabunda.

Orchestra Baobab lança o seu swing déhanché nos nossos ouvidos e, em seguida, e então abrimos o vinho, que fica leve como se os marabus o tivessem transformado em água. De humor mais balcânico, poderíamos sonhar com um casamento louco à la Kusturiza com profusão de cobre e vinho escorrendo barris, em melodias dilacerantes de amores contrariados.

Antropólogos, filósofos abordam o corte artificial feito pela modernidade industrial entre Natureza e Cultura. Nesta visão, o Homem está no centro e vê a Natureza como um objeto contemplado de alto, a ser explorada em muitos casos em seu benefício, na melhor das hipóteses a ser santificada para preservá-la dos abusos vorazes humanos. Se mudarmos de perspectiva e nos posicionarmos como um membro da Natureza, ela mesma precede a Humanidade e é uma realidade ainda mais complexa na sua arquitetura interdependente, retomamos o sentido da humildade da nossa passagem na terra e atribuímos então mais vida interior e poesia a segmentos inteiros da vida na terra.

Libertos desta postura dominante que fixa o imaginário numa visão opressiva e corrosiva, podemos então procurar a colaboração em vez do confronto com os elementos que nos rodeiam para recriar laços.

Uma vez que somos a Natureza, o vinho também é natureza e resta-nos torná-lo também cultural. Não o é em espaço oco, pelo simples facto de o vinho entregue a si próprio se tornar vinagre, como papagueiam incessantemente os convertidos ao modernismo antropocêntrico. Mas porque reflecte uma transmutação pensada, sentida e orientada da matéria viva, ao longo do tempo e de gestos repetidos, segundo as culturas e os climas onde surge.

Corinne Pelluchon na obra intitulada “Os Alimentos” apela a ver o mundo em que banhamos como alimentos, e não como meros recursos que reconduzem o nosso ambiente a um instrumento a ser explorado. É assim que se fala de exploração agrícola… e menos de provar, saborear o mundo e os seus alimentos.

“A vontade de superar o dualismo natureza/cultura e levar a sério a dimensão corporal do sujeito e o “viver de…” implicam um interesse crescente pela agricultura. A agricultura é a cultura da natureza no duplo sentido do termo:

– no sentido em que a agricultura mantém a natureza (ou deveria fazê-lo), do latim “colere”: cuidar

e

– no sentido em que a agricultura conhece a natureza, e onde esse conhecimento, que começa com a atenção aos solos, é também um autoconhecimento, um lembrete de que existir é pousar-se num solo. Humus e humildade andam de mãos dadas. É por isso que a agricultura é uma parte da sabedoria.”

Baudelaire dizia que com o vinho se bebia genialidade.

Que este Ano Novo vos faça encontrar muitos génios, duendes e amotinados, para iluminar as vossas estações e alimentar o sonho.

 

Nadir Bensmail

Os Goliardos, Lisboa, Janeiro 2023

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